O meu tio Francisco Esteves faleceu com COVID 19, no Hospital de Santa Maria, depois de um mês internado. Escrevi este texto de imediato, ainda sob a emoção. Só agora, já com o devido distanciamento, o revi e o publico em sua homenagem.
Quando nasci tinhas onze anos. Foi contigo que comecei a dar os primeiros passos.
Recordo quando a avó enchia os pratos e as travessas de arroz-doce e o aroma da canela nos despertava das brincadeiras junto ao poço. Corríamos em desafio até à cozinha. Ombro a ombro, rapávamos as sobras do arroz, numa pequena competição.
Tio e sobrinha a concorrerem por mais uma colherada.
Lembras-te quando fomos os dois na procissão do Senhor dos Passos, no Cartaxo?
Vestias uma batina roxa até aos pés e caminhavas, de mão dada, com um anjinho de asas celestiais. Marchávamos ao som dos cânticos atrás do andor. No final da procissão era obrigatório ir tirar o retrato. Com a batina já amarrotada, esforçavas-te para manter o anjo sentado em cima da mesa de pé de galo. O fotógrafo desesperava, mas conseguiu retratar o acontecimento.
Foi quando partiste para a guerra, em Moçambique, que te revejo fardado de soldado com um sorriso que escondia a emoção – toda a família rumou a Lisboa.
Sempre que passo sobre a ponte 25 de Abril, o meu olhar revê aquelas imagens, no cais de Alcântara.
Um a um, os soldados desapareciam engolidos pelo monstro cinzento. As famílias amontoavam-se por detrás das vedações de metal. Gritavam pelos nomes dos filhos, irmãos, maridos, namorados…. Choravam e erguiam os braços a implorar um último olhar. Rogavam a Deus pelas suas vidas.
Uma mulher, vestida de preto e lenço na cabeça, chega num táxi. Grita pelo filho. Corre em direção ao navio. Os polícias agarram-na. As chaminés rugem e o enorme barco afasta-se em direção ao oceano. E a mulher continua a gritar pelo filho…
Foste para uma terra que desconhecias.
Uma guerra que não era a tua.
Onde se morria e se matava.
Calaste o que viveste naquele inferno. Por segundos, poderia ter sido o camião que conduzias a explodir.
Foi o destino? Foi sorte?
Três anos depois voltámos a Alcântara. Os abraços e as lágrimas de alegria ressoavam, num coro de vozes, em agradecimento à Nossa Senhora de Fátima.
Alguns nunca regressaram. Os caixões eram desembarcados e colocados longe dos olhares inoportunos.
…
Hoje os caixões chegam também fechados. Não há tempo para um último olhar.
O covid-19 levou-os de repente. Permaneceram dias, semanas, meses… isolados do mundo… e dos seus.
Estiveste um mês no hospital. Conversávamos ao telefone. Colocavas a tua fotografia nas redes sociais. E ainda escreveste umas piadas sobre futebol.
Parecia que ias vencer o jogo da tua vida.
Percebeste, por fim, que o covid-19 te derrotava.
Ganhou-te nesta luta desigual.
Uma guerra onde não sabemos onde está o inimigo.
Foste a enterrar sem nos despedirmos.
A morte veio de repente.
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